Ela
sentava na penúltima cadeira da última fileira, perto da janela. Todo dia era
igual... Uma das primeiras a chegar, colocava a mochila cuidadosamente
equilibrada no encosto da cadeira e a empurrava até quase encostar na janela,
abrindo-a num ângulo exato que permitia a vista de um único pedaço imperfeito
de céu azul, sentava e suspirava tirando uma caderneta ou um livro de dentro da
mochila, só largando-os quando o último sinal batia e ia para casa.
Fim do dia.
Um novo dia.
A rotina se repetia sempre,
os funcionários já a conheciam de longa data; haviam percebido sua diferença
desde o primeiro dia que colocara os pés ali... A garota quietinha que ninguém
mais lembrava o nome... Ela havia dito com certeza e devia estar escrito nos
diários escolares, mas para todos era só a vinte e três... Como eles sabiam?
Hum... Creio que é por que os professores tinham de repeti-lo muitas vezes para
a garota que sentava na penúltima carteira da última fileira respondesse, não
era a toa que todos comentavam que ela vivia em algum outro mundo.
Bate o sinal.
Pega a mochila.
Vai embora.
Volta para a aula.
Ninguém falava com ela, ela
não falava com ninguém... Na verdade, nem sabiam se ela realmente existia... Os
mais novos acreditavam que era que nem a loira do banheiro... Abriam-se todas
as torneiras, sentavam no chão do banheiro com papel higiênico no nariz e
repetiam-se vinte e três vezes o número vinte e três. Funcionava melhor se vinte
e três pessoas fizessem isso ao mesmo tempo as nove e vinte e três.
Loira do banheiro.
O homem do chuveiro.
A Múmia da Freira
Assassina.
A Professora Morta-Viva.
Os
veteranos a consideravam invisível, ou ainda a viam como a guria de tranças que
chegara atrasada no primeiro dia de aula da quinta série, e todos riram quando
errou o chute, mas acertou o sapato... Sabem? Aquelas criaturas que nunca ficam
famosas, populares...? Que nunca conhecem ninguém fora da própria turma? Aquela
que senta no fundo e que os garotos zoam por não ter ninguém? Aquela
criaturinha pequena e de cabeça baixa com os cabelos tampando os olhos que ao
ser chamada lá na frente ficou vermelha, gaguejou, esqueceu o texto e todos
riram? Aquela que não desce quando o sinal toca e sua voz é tão pouca que
lembra o vento sussurrando pelas persianas semi-destruídas da sala de aula.
Diretoria.
Reitoria.
Feitoria.
Torturaria?
Outro
dia a mais... Um igual ao outro, a mesma coisa sempre... Ninguém prestou
atenção, mas ela não tirou nada da mochila, não olhou seu canto de céu nem
mesmo aproximou a cadeira da parede. Ninguém percebeu... Estranharam, ela fora
chamada a diretoria... Lembraram, ela da educação física sempre fugiria...
Riram, ela voltou com a cabeça mais baixa ainda... Gargalharam, a professora
também a bronqueara...
Calaram.
Pra casa voltaram.
Se desligaram.
Não se sabe exatamente o
que aconteceu... Ela não voltou no dia seguinte, para onde foi? – Vinte e três.
- ? – Vinte e três... - ? – Vinte e três...! - ? – Vinte e três!!!! - ? – Vinte
e três? – ninguém respondeu, a professora estranhando perguntou – Onde está a
garota que senta na penúltima cadeira da última fileira? A vinte e três? –
ninguém sabia responder, a professora que lecionava em mais de cinco escolas e
tinham mais de quinze tempos naquele dia e uns tantos números vinte e três para
se preocupar, nem ligou, deveria de estar doente... Mas uma pulga coçou na gola
de sua camisa até a hora do intervalo...
Bicho papão.
Curupira, oh não...
Cuca que pega;
Velho do saco que leva.
Assim que o primeiro
servente desceu e voltou assustado, a escola parou. Ninguém entendeu exatamente
o que aconteceu, não tinha nada demais acontecendo para aquilo estar lá.
Engoliram em seco, alguém deveria fazer alguma coisa ou pelo menos tirar aquilo
dali... Os sinais bateram, bateram todos os que eram possíveis, mas ninguém
saiu dali... Vinte e três... Talvez fosse a primeira vez que eles realmente a
viram, talvez fosse a primeira vez que ela sorria... Engoliram novamente em
seco sem conseguirem dizer nada...
Vento.
Tento.
Morte.
Norte.
A garota que senta na
penúltima cadeira da última fileira, vinte e três, foi encontrada morta no
pátio da escola. Suicídio, cortou os próprios pulsos nas grades que ficavam nos
muros do colégio, lá no alto, com um sorriso maníaco, lembrando o Coringa do
Batman em uma macabra paródia de cristo crucificado. Não tiraram o corpo ele
ficou ali por muito tempo, tanto tempo...
Verdade.
Honestidade.
Covarde.
Coragem.
Não se sabe se isso é
verdade ou só mais uma lenda urbana que se espalhou do e pelo colégio da Santa
Cruz na rua Tal do Qual em uma cidade Que Ninguém Sabe, mas pode ser alguém que
senta na penúltima cadeira da última fileira perto da janela da sua sala ou o
número vinte e três que nunca desce na hora do intervalo, ou alguém que nunca
fala com ninguém e cora quando é chamado lá na frente.
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