"Tenho
preguiça das pessoas cheias de certezas inabaláveis, verdades inquestionáveis e
convicções imexíveis. Houve uma época em que as invejei: tão seguras e
opinativas. Hoje, elas me espantam...
Tenho
preguiça das pessoas cheias de gêneros, modelitos e atitudes midiáticas. Houve
uma época em que fui como elas: Datada! Hoje, elas me entediam... É isso,
quanto mais pertencemos a um tempo ou grupo, mais espelho dele somos, mais
produto somos. Meros reflexos, e com o tempo desbotamos ou ficamos obsoletos.
A vida é
muito curta para ficarmos encastelados em dogmas, entrincheirados em
ideologias, congelados em estilos de vida, opinião e padrões. Inferno, para
gregos, é a eterna repetição, a impossibilidade de transformação e mudança.
Somos livres, curiosos e ousados, senão não evoluiríamos; temos vocação para
novo, somos inconstantes. Não podemos ser sempre coerentes.
Claro
que temos princípios mestres, raízes profundas, afetos verdadeiros e áreas
nobres que tendemos a respeitar e são grandes catalisadores das escolhas que
fazemos. Claro que temos uma espinha dorsal, que nos dá norte e referência, mas
temos também inquietude e intuição, coragem e desejos. Estamos em movimento.
Não somos fósseis!
Somos as
tais metamorfoses ambulantes, ensaios, eternos rascunhos, obras inacabadas.
Sendo, somos. Criaturas de nós mesmo, em fazedora, em confecção, em ebulição.
Somos
muitos, para sermos nós mesmos. E esses muitos, todos esses outros-nós que
coexistem, querem anseiam, comovem-se e gostam de coisas diferentes, distintas,
cada uma a seu tempo e hora, ou mesmo simultaneamente.
Não se
cobre coerência. Como diria Woody Allen, coerência é o fantasma das mentes
pequenas. Exija-se. Isso sim, experimentação, idas e vindas, mergulhos, voos,
incursões. Tente, acerte, erre, veja, reveja, ou não volte nunca mais.
Encontre-se, perca-se, procure mais uma vez, desista, depois desista de
desistir, desdiga-se, recomece. Sua cabeça é imensa e não é um troféu que você
empalha e pendura na parede, vencido.
Em nós,
cabe tudo. O concerto clássico, o bolerão, a música Techno. O shopping, o
culto, a biblioteca, o mapa astral, o doutorado. Qualquer tipo de arte, desde
que nos comova. Qualquer tipo de arte, desde que nos comova. Qualquer conversa,
desde que haja troca. Qualquer tribo, trupe, trip ou tropeço desde que nos
estimule, minimamente. Qualquer canto, palavra ou conto, desde que nos traduza.
Pois tudo vale a pena para nossas almas não pequenas. Vamos alternando nossos
humores, bandeiras e fases, porque queremos estar confortáveis dentro das
nossas peles, e dentro das nossas peles somos fluidos, maleáveis e múltiplos.
A
história do pensamento humano não fala de outra coisa: somos coerentes e
incoerentes – uma hora isso, outra hora aquilo, um pouco disso, um pouco
daquilo, isso e aquilo, não apenas, ou isso ou aquilo. Ser ou não ser. Ser e
não ser. Pensamento é movimento.
A paixão
é da ordem da incoerência; o amor, da coerência. A aventura e a imaginação são
incoerentes; enquanto a rotina e a segurança são coerentes. O perdão é
incoerente, e o ressentimento, coerente. Patrulhamento, crítica e cobrança são
armas da coerência; liberdade e autonomia são frutos da incoerência.
Incoerentes são a espiritualidade, a ciência e a arte; coerentes, as igrejas,
os tratados e as leis. A educação é coerente; a evolução, incoerente. A morte é
coerente, a vida, absurdamente, incoerente.
Outro
dia me perguntaram: Você acredita em Deus?. “Depende”, respondi. Tem dias que
sim. Tem dias que não. Tem dias que Ele acredita mais em mim do que eu Nele.
Tem dias que Ele não sobrevive à segunda pergunta; tem dias que só o mistério é
resposta. Tem dias Darwin; tem dias Agostinho. Tem dias que só Freud; tem dias
cânticos. Tem dias que eu me desespero, lúcida e sozinha. Tem dias que eu rezo
para dormir, tem dias que só Dormonid. Tem dias que eu estou inteira, convicta.
Incoerentemente, inteira e convicta!
Pelo Dicionário Houaiss:
Coerência:
s.f. uniformidade no proceder, igualdade de ânimo.
Fóssil:
s.m. que ou o que perdeu a vitalidade ou a capacidade de crescer ou se
desenvolver, espécie que permaneceu essencialmente inalterada.
Conclusão:
coerência é para fóssil!" - Por Hilda Lucas